sábado, 2 de março de 2013




A DESSENSIBILIZAÇÃO DE SI MESMO


Jucimara  Gonçalves  Bernardo


Originalmente somos impessoais, porque já nascemos em uma rede pré-estabelecida de significados, e à medida que vamos existindo, passamos a introjetar e a apropriar-se desses significados, tornando-nos assim, cada vez mais complexos, impessoais e alheios a nossa própria existência (estranhos a si – mesmo).
Se parássemos para refletir sobre a forma como vivemos, perceberíamos que o tempo todo, estamos utilizando mecanismos de compulsão (que nos tira do campo do prazer, para nos colocar no campo da necessidade) para  evitar o desprazer.
Segundo Monteiro (2004), atualmente, tem sido a onipotência e a onipresença da mídia que determina o que devemos: comer, onde viver, como e onde morar e se divertir, o que trajar, o que ler, em que e em quem acreditar, como se comportar, qual a forma corporal que devemos ter, que música devemos escutar e etc.
O consumismo cria necessidades artificiais com tal força e apelo que há o esvaziamento e quase que a inexistência de um senso crítico. É o que acontece por exemplo, quando o sujeito se sente constrangido por não ter o novo lançamento de carro, celular, tênis, etc (compulsão de repetição).
Além da compulsão, temos a criação de um modelo de ser no mundo (o homem bem sucedido e belo fisicamente) a ser atingido. Construção social esta, que impele aquele que não conseguiu atingir o modelo, a sentir-se praticamente fora do mundo e a margem de uma sociedade que o culpa, e o coloca como sendo o único responsável pelo seu fracasso.
De acordo com Perls (1977, p.19):


A sociedade exige conformidade através da educação; enfatiza e recompensa o desenvolvimento intelectual do individuo. Na minha linguagem chamo o intelecto de “computador embutido”. Cada cultura e os indivíduos que a compõem criaram certos conceitos e imagens do comportamento social ideal, ou formas como o individuo “deveria” funcionar dentro desta estrutura de referencia. Para ser aceito pela sociedade, o sujeito reponde com um conjunto de respostas fixas. Ele chega a estas respostas “computando” o que considera ser a reação apropriada. A fim de compactuar com os “deverias” da sociedade, o individuo aprende a ignorar seus próprios sentimentos, desejos e emoções. Então ele também se dissocia de ser parte integrante da natureza (Perls, 1977. p. 19).

  
Clarice Lispector em sua obra: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) relatou que:


(...) não temos aceitado o que não entendemos porque não queremos passar por tolos (...) temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que a nossa indiferença é angustia disfarçada (...) temos sorrido em público do que não sorriríamos quando estivéssemos sozinhos (...) temo-nos temido um ao outro acima de tudo, e a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Temos nos distanciados de nós mesmos o máximo que podemos, temos nos esforçados para corresponder as expectativas do outro social e exigido que esse outro social corresponda as nossas expectativas também, temos nos calado diante do discurso do outro, o qual nos chega como a única verdade, temos abandonado o sonho de viver, para vegetar e obedecer ordens que aniquila a nossa subjetividade.
Temos absorvido, perpetuado e nos tornado vítima do seguinte discurso pregado pela cultura ocidental: chorar em público é feio, homens não devem chorar, falar o que realmente importa é garfe, enfim é proibido demonstrar fragilidade. E embora a ciência tenha validado a ideia do singular, e saibamos todos da singularidade de cada ser, não a respeitamos, porque o modelo de homem que a sociedade atual deseja beira a ilusão e a utopia da perfeição.
Estamos vivendo a era da instabilidade, onde o que é verdade hoje é inverdade amanhã, onde tudo é incerto e não podemos se quer cultivar laços de longa duração, porque corremos o risco de nos decepcionar com os vínculos estabelecidos e isso nos faz beirar ao pânico.
Temos esquecido de viver o presente para viver somente o futuro, temos trocado as relações sociais face- a- face pelas salas de bate-bato na internet, temos deixado de amar, dar carinho e atenção aos nossos filhos para dar amor industrializado (bens materiais), temos abandonado os hábitos saudáveis e buscado o prazer químico (drogas) porque queremos sempre o prazer imediato. E tudo isso está refletido visivelmente na desestrutura familiar e psíquica das novas gerações.
Falar sobre os próprios sentimentos tem se tornado cada vez mais difícil e distante da realidade que nos cerca. No entanto, as pessoas estão dando sinais do seu sofrimento o tempo todo através: do consumo exacerbado do álcool e das drogas, da anorexia, da bulimia, do câncer, das dores musculares, da cefaleia,  da hipertensão, da insônia, da falta de apetite. Da compulsão por: trabalho, esporte e estudo, comportamento retraído, inabilidade para se relacionar com a família e amigos, doença psiquiátrica, ansiedade ou pânico, mudança da personalidade, irritabilidade, pessimismo, depressão e/ou apatia, tentativa de suicídio, sentimento de culpa, desvalia, solidão, impotência e desesperança, somatização, menção repetida de morte e/ou suicídio, enfim sinais e sintomas que denunciam o caos psíquico gerado pelo processo de dessensibilização do eu.
Perls (2002), ao referir-se as inúmeras possibilidades de apropriação da vida, assumidas pelo homem, convoca-nos a refletir descrevendo o seguinte trecho:


É essencial que o homem aprenda a “sensação de si mesmo”, restaurando todos os impulsos e as necessidades, todos os prazeres e as dores, todas as emoções e sensações que fazem a vida valer a pena ser vivida, que se tornaram fundo ou foram reprimidas em nome do seu ideal dourado. Deve aprender a fazer outros contatos na vida além de suas relações comerciais (p.152).


O conflito entre as necessidades sociais e as biológicas do homem, pode levar o sujeito a constituir uma personalidade integrada ou neurótica. De acordo com Perls (2002) o que é bom e mau, geralmente chamado de certo e errado, poderia:

Do ponto de vista social [...] não ser de forma alguma bom e mau (saudável ou doentio) para o organismo. Contra as leis biológicas de auto-regulação a humanidade criou a regulação moralista – a regra da ética, o sistema de comportamento padronizado (p.105-106).

Assim como a lei serve também, para controlar e padronizar as relações do homem, tudo aquilo que foge à regra, inclusive: o comportamento, uma forma diferente de pensar e a aparência física, é tido como desviante e passa a ser discriminado por grande parte da sociedade.
Com isso, o autor supracitado adverte-nos que o autocontrole exigido socialmente pode ser alcançado apenas à custa da desvitalização e do enfraquecimento das funções de grande parte da personalidade humana – a custa da criação de uma neurose coletiva e individual.
E neste sentido, a neurose pode ser definida como sendo o conflito psíquico gerado em decorrência do duelo entre os interesses pessoais e as expectativas do outro social.

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REFERÊNCIAS:


PERLS, F. S. Isto é Gestalt São Paulo: Summus, 1977.

PERLS, F. S. Ego, fome e agressão – uma revisão da teoria e do método de Freud. São Paulo: Summus, 2002.

RODRIGUES, H. E. Introdução à gestalt - terapia: conversando sobre os fundamentos da abordagem gestáltica. Petrópolis, Rio de Janeiro: ED. Vozes Ltda.2000.

LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Disponível em: www.4shared.com. Acesso em: 18 de fevereiro de 2010.

MONTEIRO, D. A. O sujeito do consumo e os laços afetivos. Texto apresentado no XV Congresso Brasileiro de Psicanálise, Salvador, 13-15/05/04. Disponível em: www.scielo.com. Acesso em: 25 de novembro de 2009.